AviAction: Uma escala em Lille, rumo ao decrescimento da aviação

Mais de duas centenas de pessoas encontraram-se em outubro em Lille, norte de França, para a segunda conferência internacional da rede Stay Grounded. Perante a crise climática e os planos ecocidas da indústria da aviação, imaginaram ações conjuntas para travar a expansão de aeroportos, reduzir o tráfego aéreo e defender a vida.

 

Estou aqui hoje a festejar o meu aniversário”, anunciou Audrey Boehly, durante o painel de abertura da conferência AviAction. Ao cessar dos aplausos, acrescentou: “O meu aniversário como ativista”.

Faz precisamente dois anos que esta parisiense, mãe, engenheira química de formação e jornalista de ciência, invadiu a pista do Aeroporto de Roissy-Charles de Gaulle. Na sua primeira ação de desobediência civil, juntou-se a uma centena de pessoas para dizer não ao Terminal 4, um projeto que previa praticamente construir um novo aeroporto dentro daquele que já é o segundo maior e mais poluente aeroporto da Europa.

Se permitisse que tamanho crime climático avançasse, tão perto da nossa casa, não poderia olhar as minhas filhas nos olhos“. A casa, atordoada pelos 1800 voos diários (a que a expansão queria acrescentar 500), virou oficina de faixas e cartazes. Audrey decidiu dedicar o seu tempo e energia ao coletivo Não ao Terminal 4 (@NonAuTerminal4), que junta duas dezenas de grupos e associações . Em novembro do ano passado, após um ano de resistência e persistência, a notícia: o governo francês cancelava o mega projeto “obsoleto” de expansão do principal aeroporto de Paris.

Ação direta no aeroporto de Lille-Lesquin durante a conferência da Stay Grounded

Nos passados dias 5 a 9 de outubro, em Lille, Audrey juntou-se a mais de 150 pessoas de todo o mundo, e a várias dezenas participando online, das mais diversas origens, idades e ocupações, de coletivos, associações e ONG que dão vida à rede Stay Grounded. Acolhidos pela associação N.A.D.A. – Não ao aumento do aeroporto de Lille Lesquin, foram dias para partilhar experiências e pensar em conjunto como agir para fazer decrescer a aviação – o mais poluente e mais injusto dos meios de transporte.

Sara Mingorría, investigadora da Universidade de Girona, doutora em economia e ativista da plataforma Zeroport, narrou o caminho coletivo percorrido perante o mega projeto de expansão do Aeroporto de Barcelona. Um caminho que começou na conferência da Stay Grounded em 2019, envolveu investigadores universitários, empresários do imobiliário (cujas casas desvalorizariam com a expansão), sindicatos agrícolas, associações de vizinhos pelo decrescimento do turismo… E culminou a 19 de setembro do ano passado. Dias depois do anúncio oficial de que o projeto fora enfim cancelado, uma maré de dezenas de milhares de pessoas tomou as ruas da cidade sob o lema “Menos aviões, mais vida!”, numa tremenda celebração do poder coletivo. “O ativismo não é só lutar. Também é celebrar juntas”, disse Sara.

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E se vencermos? É fundamental, desde o início, imaginar que vamos vencer, imaginar o mundo em que queremos viver sem o projeto”, partilharam dois habitantes da ZAD de Notre Dame des Landes. Uma década de ocupação de terras “contra o aeroporto e o seu mundo” cultivou um território rebelde, autogerido, sempre imperfeito, e conseguiu o cancelamento do mega projeto do novo aeroporto da região de Nantes. Hoje, uma padaria coletiva e hortas comunitárias, uma biblioteca e um farol em madeira, existem no lugar onde as elites quiseram impor pistas de alcatrão e guichês de check in, controle de fronteiras e uma torre de controle aéreo.

Como juntar os próprios trabalhadores e sindicatos do setor da aviação, para fazer com que esta indústria aterre em segurança – é o objetivo do grupo Safe Landing. Finlay Asher, engenheiro de motores aeronáuticos, que já trabalhou para aeronaves da TAP, e Todd Smith, ex-piloto comercial, procuram explicar aos seus colegas que a única forma de assegurar emprego a longo prazo é parar o crescimento do setor e da sua poluição. “Não há nada pior para a economia e para a segurança laboral do que a catástrofe climática que a aviação está a provocar”, afirma Finlay. “Nós construímos esta indústria, nós operamo-la. E nós podemos transformá-la”, diz, apelando aos seus colegas a juntar-se em assembleias de trabalhadores. O Safe Landing também tem contribuído para desmontar com factos as falsas soluções evocadas pelos patrões do setor, como os voos elétricos, voos a hidrogénio ou os biocombustíveis, revelando-as como mero greenwashing, com a gravidade de distrair o público da solução verdadeira: voar menos.

Recorrente na conferência, o recente feito histórico em Amesterdão. Schiphol, o terceiro aeroporto mais movimentado da Europa, foi obrigado pelo governo dos Países Baixos a diminuir o número de movimentos aéreos, para cumprir a legislação sobre poluição e proteger a saúde da população. Um precedente que pode inspirar a conseguir estabelecer limites em aeroportos como Paris ou Lisboa. Entretanto, a luta pelo decrescimento da aviação no país prossegue, e Extinction Rebellion e Greenpeace apelam a nova ação de massas em pleno Aeroporto de Schiphol, no dia 5 de novembro.

 

Da injustiça global à solidariedade global

A urgência de atuar é cada vez mais evidente. As catástrofes climáticas deste ano no Paquistão provocaram tamanha destruição e mais de mil mortos, milhares de feridos e milhões de afetados. Num povo como outros da Ásia, África, América Latina, que não consumimos nem contaminamos ao nível dos países chamados do primeiro mundo. Mas injustamente pagamos as consequências”, afirmou Gabriela Vega Tellez, membro do Conselho Nacional Indígena do México.

A aviação é uma excelente representação da injustiça global: uma elite sobretudo do Norte desfruta das vantagens de voar enquanto pessoas sobretudo do Sul, que nunca pisaram um avião, lidam com os impactos destrutivos do tráfego aéreo”, concordou Daniela Subtil, da Stay Grounded.

A investigadora em desenvolvimento e sustentabilidade, natural de Alcobaça, tem ajudado a mapear os conflitos pelo mundo provocados pela indústria da aviação, e a pôr em contacto populações e territórios na luta comum em defesa da vida. “Os grupos na Europa têm a responsabilidade de lutar em conjunto com camaradas de outras partes do mundo que resistem contra projetos aeroportuários, plantações de agrocombustíveis, projetos de compensação de carbono e o turismo de massas, para amplificar e apoiar as suas lutas – e ao mesmo tempo aprender com as experiências uns dos outros.

Até porque a elite que provoca estes conflitos é a mesma. A multinacional francesa Vinci, que detém os aeroportos portugueses, acaba de se tornar dona de treze aeroportos no México, onde movimentos sociais e indígenas têm resistido à expansão aeroportuária, em defesa das suas terras, das suas águas e da sua autonomia. Aeroportos “construídos com dinheiro dos contribuintes em terras despojadas às comunidades indígenas”, denunciou Gabriela Tellez, lembrando o “quão importante é, como povos do mundo e como rede, erguermos cada vez mais a nossa voz, na luta por um mundo melhor, ‘um mundo onde caibam muitos mundos’ “.

No sábado, dia 8, véspera do fim da conferência AviAction, uma multidão formou um mapa na Praça de República, centro de Lille. Nele assinalavam-se mais de cem conflitos que decorrem neste momento em torno de aeroportos por todo o mundo. “Stop a todas as expansões de aeroportos já”, lia-se numa faixa.

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O sol da tarde diluía o cinzento outonal do norte da França, enquanto centenas de pessoas, habitantes de Lille, estudantes, ativistas da Stay Grounded, deputados municipais, se juntavam ao som de uma batucada e de uma fanfarra, numa concentração pelo fim da expansão do aeroporto de Lille – e de todos os outros mundo fora. O lóbi da aviação pretende duplicar o número de movimentos deste aeroporto, que já está rodeado de vários aeroportos internacionais como Paris ou Charleroi. Mas as intenções têm sido denunciadas e travadas pelo trabalho da associação NADA, criada em março de 2021.

As lutas locais de resistência contra a expansão de aeroportos em qualquer parte do mundo só podem vencer se lutarem como um movimento global e, em conjunto, rejeitarem o crescimento da aviação em toda a parte”, sublinhou Daniela.

Hospedadas uma semana por habitantes de Lille solidárias, as participantes rumaram de regresso aos seus lugares de origem: de comboio, boleia, autocarro, bicicleta…, sem que qualquer voo tenha sido tomado.

À margem deste encontro de líderes pela justiça, pela ecologia e pelo futuro, os líderes do setor da aviação juntaram-se para a assembleia anual da Organização Internacional da Aviação Civil (ICAO, na sigla inglesa), no Canadá, onde, perante a crise climática, voltaram a planear o aumento o tráfego aéreo, encoberto com falsas soluções para uma neutralidade carbónica em 2050.

 

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