Vamos passar a ser sérios em relação ao futuro da aviação?

Num sistema de mobilidade justo e ecológico, a aviação apenas pode ter um lugar muito circunscrito. Pôr em prática as propostas da campanha ATERRA seria um primeiro passo nessa direção.

opinião de Hans Eickoff, ativista da ATERRA, publicada no jornal Público a 4 de Novembro de 2020

Estamos a assistir a uma redução significativa da aviação devido à pandemia de covid-19, tanto no que diz respeito ao número de voos como ao número de passageiros transportados. A TAP, por exemplo, transportou menos 11 milhões de passageiros entre março e outubro de 2020, em comparação com o período homólogo do ano passado, o que corresponde a uma quebra de 84%. Outras companhias aéreas muito presentes em Portugal, como a Easyjet e Ryanair, passam por situações semelhantes, sendo que a Easyjet sofreu prejuízos de 1200 milhões de euros no exercício que terminou em 30 de setembro, pela primeira vez na sua história, e que a Ryanair transportou apenas 20% de passageiros entre abril e setembro, em comparação com 2019 (-68,6 milhões).

Próximo do seu auge, em 2018, a aviação foi responsável por 5,9% de todo o aquecimento climático induzido pelo homem, quando se incluem os impactos não relacionados com o carbono, nomeadamente resultantes da formação de rastros de condensação (“contrails”), de nuvens cirrus e de ozono em grande altitude. Ao mesmo tempo, a aviação é um meio de transporte elitista: a grande maioria da população mundial nunca pôs os pés num avião e um pequeno número de passageiros aéreos frequentes é responsável pela maior parte das emissões. Sem nunca terem voado, são as populações mais vulneráveis que mais sofrem com os impactos da aviação, tanto no que diz respeito às consequências das alterações climáticas como aos impactos diretos dos aeroportos e da sua construção.

De acordo com a “Contestação abaixo-assinada sobre o EIA do Aeroporto do Montijo e suas Acessibilidades”, de 18 de setembro de 2019, subscrita por 11 cientistas portugueses, o aumento previsto da capacidade do aeroporto de Lisboa (Portela + Montijo), em conjunto com um aumento proporcional da capacidade nos restantes aeroportos nacionais, e mesmo pressupondo uma melhoria da eficiência das aeronaves na ordem de 40%, fariam ascender as emissões da aviação com origem em Portugal a seis milhões de toneladas em 2050 de CO2, o que corresponderia a 60% das emissões admissíveis a nível nacional no contexto do Roteiro para a Neutralidade Carbónica, sem ainda ter em conta os efeitos não relacionados com o carbono. Esta perspetiva é absolutamente insustentável do ponto de vista climático. Importa, por isso, reduzir a aviação de uma forma planeada e deliberada, e não de uma forma abrupta como sucedeu durante a pandemia de covid-19, com todos os efeitos negativos, nomeadamente numa economia como a portuguesa, muito dependente das receitas do turismo, para além dos efeitos diretos das dificuldades da TAP nas contas nacionais e da ajuda do Estado no valor de 1200 milhões de euros.

Torna-se urgente repensar o futuro do sector de uma forma radicalmente diferente. Assim, a campanha ATERRA, que representa mais de 20 iniciativas portuguesas e faz parte da rede internacional STAY GROUNDED, solicitou audiências aos grupos parlamentares e deputados únicos e não-inscritos eleitos à Assembleia da República para apresentar o relatório “Decrescimento da Aviação – Reduzir as viagens aéreas de forma justa”, recentemente editado em português por um coletivo de voluntários. O relatório é resultado de uma conferência internacional que teve lugar em julho de 2019 em Barcelona, juntando mais de 150 peritos e ativistas, sem que um único voo tenha sido tomado pelos participantes presenciais ou por videoconferência.

A aviação não pode voltar ao “normal” se quisermos manter o aquecimento global abaixo de 1,5ºC, conforme inscrito no Acordo de Paris, e assegurar que o planeta Terra continue habitável para a espécie humana. Assim, a campanha ATERRA propôs medidas que podem reduzir a aviação de uma forma justa e sustentada. Essas medidas devem eliminar isenções fiscais sobre o querosene, os bilhetes e o IVA, e aplicar uma taxa de carbono adequada, acabando com os benefícios atuais da aviação que absurdamente permitem voar a preços baixos e colocar em desvantagem as alternativas de mobilidade mais sustentáveis. Devem ainda fazer os passageiros frequentes pagar mais, através de uma tarifa específica, desincentivando a utilização do avião e financiando alternativas. Devem reduzir e suprimir voos de curta distância (como os voos dentro de Portugal e da Península Ibérica) que podem (e devem) ser substituídos por viagens de comboio (diurnos e noturnos).

Torna-se imperativo proibir a construção de novos aeroportos ou a ampliação de existentes (como aquela que se pretende fazer em Lisboa). Promovendo alternativas às viagens aéreas e destinos mais próximos, a aposta na ferrovia pode representar um estímulo económico importante nestes tempos de crise, como demonstra o exemplo do investimento nos comboios urbanos e suburbanos em Espanha. É o momento para investir nos comboios internacionais, como o Lusitânia e o Sud Express. Universidades, empresas e outras organizações devem mudar as suas políticas de viagem através de regras que promovam a utilização do comboio e outros meios de transporte menos poluentes, a par da limitação do número de deslocações em serviço e da substituição de viagens por videoconferências, como já está a acontecer devido à pandemia.

Até ao momento, a campanha ATERRA teve audiências com os grupos parlamentares do Partido Ecologista “Os Verdes” e do Bloco de Esquerda, aguardando resposta à sua solicitação por parte dos restantes grupos parlamentares. Não há dúvida sobre a necessidade de reduzir da aviação tendo em conta os limites biofísicos do Planeta e as metas estabelecidas no Acordo de Paris. Os votos a favor da Declaração do Estado de Urgência Climática na Assembleia da República em 7 de junho de 2019 e da Emergência Climática e Ambiental no Parlamento Europeu em 28 de novembro de 2019 têm de traduzir-se agora em medidas concretas para adaptar o futuro da aviação aos objetivos declarados. Vamos passar a ser sérios: num sistema de mobilidade justo e ecológico, a aviação apenas pode ter um lugar muito circunscrito. Pôr em prática as propostas da campanha ATERRA seria um primeiro passo nessa direção.

Médico e activista, membro da Rede para o Decrescimento e da campanha ATERRA

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